Comunicação ao País do
Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio
Palácio de Belém - 09 de Julho de 2004
Portugueses,
Fui confrontado com a demissão do Governo como consequência da
aceitação por parte do Sr. Primeiro-Ministro do convite que lhe foi endereçado
para presidir à Comissão Europeia. Ou seja, com a interrupção do mandato do
Governo por sua própria iniciativa.
Entendi e entendo que a presença de um português à frente da Comissão
Europeia é um factor positivo e prestigiante para Portugal.
O Senhor Primeiro Ministro sabia que não podia fazer depender a sua
opção pessoal do modo como fosse resolvido o problema criado pela sua demissão.
A decisão do Presidente da República, perante essa circunstância, é sempre uma
decisão autónoma e livre.
A alternativa é conhecida de todos: ou o Presidente da República nomeia
um novo Primeiro Ministro, indicado pelo partido maioritário na Assembleia da
República, ou dissolve a Assembleia da República, e convoca eleições gerais
antecipadas.
Ponderei, sempre e até ao fim, ambas as possibilidades.
E nesse processo, mesmo antes de ouvir os partidos políticos com
representação parlamentar e o Conselho de Estado, entendi consultar um conjunto
de personalidades, incluindo os antigos Presidentes da República e Primeiros Ministros.
Foi uma decisão complexa, dada a controvérsia sobre a melhor forma de
resolver o problema. Qualquer das alternativas comportava custos. A opinião
pública tinha a percepção destes custos e, por isso, dividiu-se entre os dois
caminhos para resolver a crise. Acresce que, ao contrário do que aconteceu
quando da demissão do Primeiro-Ministro António Guterres, na sequência das
últimas eleições autárquicas, onde então se verificou consenso partidário,
regista-se agora uma forte divergência.
Nestas circunstâncias, o Presidente da República tem de avaliar e
decidir, de acordo com a Constituição e com a sua interpretação do interesse
nacional.
Tenho reafirmado, ao longo dos meus dois mandatos, a importância da
estabilidade política enquanto factor de desenvolvimento nacional e de regular
funcionamento das instituições democráticas.
A estabilidade política associada ao regular funcionamento das
instituições significa:
- em primeiro lugar, que os cidadãos, quando são chamados a eleger os
seus representantes na Assembleia da República, têm, por essa via, a
possibilidade de escolher, indirectamente, um Governo para os quatro anos
seguintes;
- em segundo lugar, que, ao longo desses quatro anos, o Governo, com
respeito das regras constitucionais, deve ter a possibilidade de realizar,
livre e responsavelmente, o programa sufragado nas eleições;
- finalmente, que, no termo da legislatura, os eleitores julgarão a
actividade do Governo.
Não compete ao Presidente da República governar. Mas já lhe compete
garantir as condições de regularidade, legitimidade e autenticidade
democráticas de todo este processo.
Se estas condições estiverem garantidas, entende o Presidente da
República que o mandato do Governo não deve ser interrompido antes do fim da
legislatura, pese embora o resultado de outras eleições entretanto verificadas.
Desde que o Governo saído das eleições parlamentares continue a dispor
de consistência, vontade e legitimidade políticas, a demissão ou impedimento
permanente do Primeiro-Ministro não é motivo bastante para, por si só, impor a
necessidade de eleições antecipadas.
Posto isto, a minha avaliação concentrou-se, naturalmente, na análise
das consequências para a situação política e parlamentar da demissão do
Primeiro Ministro.
Será que mudou algo de essencial que possa justificar uma interrupção
do mandato da Assembleia da República?
Ou, ao invés, tanto quanto é possível avaliar neste momento, existem
condições para garantir um novo Governo, com uma maioria estável na Assembleia
da República, que possa assegurar a sua permanência nos dois últimos anos da
legislatura?
Na sequência das audiências dos partidos políticos, a actual maioria
garantiu-me poder constituir um novo Governo, que permita dar continuidade e
cumprir o Programa do anterior; e que essa maioria se comprometeu assegurar,
até ao final da legislatura, o mesmo apoio que deu ao governo cessante.
Nestas condições a dissolução da Assembleia da República teria de ser
considerada a solução que mais se afastaria da estabilidade política.
Um quadro de continuidade das políticas essenciais, onde, além do mais,
se incluem a Europa, a política externa, a defesa, a justiça, bem como as
políticas de consolidação orçamental, são fundamentais para que possa optar-se
pela constituição de um novo Governo.
Muito especialmente, quero ainda chamar a atenção para a proximidade de
um novo ciclo eleitoral, que inclui as eleições regionais e as autárquicas, com
que quaisquer Governos estariam sempre defrontados, para sublinhar que os
critérios de austeridade, de sobriedade e de orientação estratégica dos
investimentos do Estado, não vinculam só o Governo e a administração central.
Devem ser obrigatórios para todas as administrações e entidades públicas, a
par, naturalmente, da isenção política que perante aqueles actos eleitorais
deverão manter.
Resta, assim, a questão da legitimidade da actual maioria para formar
um novo Governo.
Nas últimas eleições parlamentares, os partidos políticos submeteram ao
eleitorado diferentes programas e candidatos, sem que nenhum tivesse obtido uma
maioria absoluta.
Nesse contexto, a legitimidade para formar Governo adveio, num primeiro
momento, do voto popular e da representação parlamentar obtida, que, logo a
seguir, deu lugar à formação de uma nova coligação maioritária na Assembleia da
República, que garantiu a aprovação do Programa de Governo.
Ora um e outro factor, garantem-me, permanecem inalterados.
Os resultados de referência continuam a ser os verificados nas eleições
parlamentares de 2002; a possibilidade de acordo parlamentar maioritário em
torno do Programa de Governo permanece válida.
Nesse sentido, decidi dar oportunidade à actual maioria de formar um
novo Governo, pelo que endereçarei o correspondente convite ao Presidente do
Partido Social Democrata, agora que, neste quadro, estão esgotadas outras
possibilidades.
Justifica-se reiterar aqui que tem de ser rigorosamente respeitada a
continuidade das políticas essenciais – repito, a Europa, a política externa, a
defesa, a justiça, bem como as políticas de consolidação orçamental.
Fique claro que é por estas vias de continuidade e pelo rigor
indispensável que passarão os critérios permanentes da minha avaliação das
condições de manutenção da estabilidade governamental; e utilizarei a plenitude
dos meus poderes constitucionais para assegurar que esses critérios serão
respeitados. Sempre terei por inaceitáveis viragens radicais nestas políticas,
pois foram elas as sufragadas pelo eleitorado
Portugueses,
O Presidente da República permanece fiel à sua obrigação constitucional
de garantir o regular funcionamento das instituições democráticas e mantém
intactos todos os seus poderes constitucionais, incluindo o poder de dissolução
da Assembleia da República. Continuo, finalmente, a poder garantir os
princípios em nome dos quais fui eleito e em nome dos quais tenho pautado a
minha actuação como Presidente da República.
Ouvi todas as opiniões.
Todos entenderão, porém, que preze a coerência com a minha
interpretação dos poderes presidenciais e a preservação do estatuto de Presidente
da República como Presidente de todos os Portugueses.
Sei bem que muitos portugueses e seus representantes políticos
propunham que tomasse outra decisão. Considerei e considero inteiramente
compreensíveis e legítimas as suas posições. Estou certo de que, mau grado a
minha diferente opção, entenderão os argumentos que me levaram a escolher o
caminho da indigitação de um novo Primeiro-Ministro.
Não tomei esta decisão de ânimo leve. Ponderei profundamente as
consequências de ambas as decisões. Procurei ser fiel ao meu passado, às minhas
convicções políticas e ao programa com que duas vezes me apresentei ao
eleitorado. Decidi apoiado numa longa experiência política e no profundo
conhecimento do país que hoje tenho. Pesei, com rigor, os caminhos que melhor
servem Portugal, nas circunstâncias concretas em que ele se encontra.
Não posso ignorar que as exigências da nossa situação económica e
financeira, com uma retoma ainda incipiente, uma consolidação orçamental longe
de estar garantida e uma situação social particularmente gravosa, me aconselham
também este caminho.
E, assim, por convicção e coerência, decidi.
Tenho consciência de que Portugal atravessa um momento difícil que
impõe ao Presidente da República a máxima ponderação dos riscos das diversas alternativas
e a necessidade de assegurar a continuidade do regime constitucional.
Nesse regime - que não fiquem dúvidas - a nossa opção é pela democracia
representativa, de que não sou o notário, mas sim o garante; e que, por isso,
não há razões de oportunidade, por mais compreensivas que sejam, que possam
abrir caminho e criar um precedente para futuros desvios plebiscitários.
Sei que posso contar com todos para, com serenidade e uma visão de
futuro, ultrapassar esta situação e para defender os valores essenciais da
democracia portuguesa.
Muito obrigado